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Athos Bucão é um artista inaugural. A primeira obra de arte em espaço público inaugurada em Brasília em 1957 é de sua autoria: o painel de azulejos da Igreja de Nossa Senhora de Fátima, a Igrejinha como a temos chamado desde então. Como complemento inseparável de sua atividade artística, comprometeu-se com a formação de um campo de pesquisa visual no Brasil, em Brasília, e atuou também no projeto de implantação dos primeiros cursos do Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília. Atuando em duas frentes, na produção e no ensino de arte, suas obras se espalharam pela cidade a ponto de se tornarem imperceptíveis. Seu trabalho foi sua contribuição mais contundente para a configuração de um ambiente em que arte e técnica caminhariam de mãos dadas na construção de um futuro mais belo e, ao menos esteticamente, generoso.
Vista como um conjunto, sua obra expressa posturas artísticas que parecem contraditórias. Ao realizar um painel de azulejos para uma igreja, confronta-se com a tradição brasileira, com o ilusionismo, a preferência por composições narrativas e a sentimentalidade exacerbada do imaginário sacro brasileiro. Em seu lugar, desenha uma grade contínua com a alternância de dois quadrados, cada um com uma figura: uma pomba branca e uma estrela preta, sempre sobre fundo azul. Nesse, assim como em toda a obra azulejar desde então, despreza artifícios ou ilusionismos que pudessem transformar soluções aparentemente estáticas e seriais em redundância.
Apesar de ser sua obra figurativa mais marcante em espaço público, a presença da simbologia cristã dificulta a inclusão do painel da Igrejinha no acervo de obras representativas do esforço racionalista de integração entre arte e indústria no Brasil. Seu antecedente mais célebre, a obra de Portinari na igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, é um conjunto de painéis autônomos. O painel de Athos Bulcão não existe fora da parede que reveste, ele é a parede. Por outro lado, no lugar de evocar o rompimento com o passado religioso e com a sentimentalidade popular para enaltecer a neutralidade de um repertório de formas geométricas de apelo internacional, Bulcão marca o lugar de sua obra na tradição brasileira e se afirma como artista moderno.
Assim como suas obras incorporadas ao primeiro acervo em espaços públicos da nova capital, sem qualquer tipo de identificação que as eleve à categoria de monumento, sua presença entre os membros do primeiro corpo docente do ICA foi marcada pela simplicidade e pelo despojamento. Como um colaborador que considera obra maior a que incorpora a sua, participou de um projeto pedagógico que se edificava a partir da proposta de articulação dos mais elevados valores artísticos aos desafios que se apresentavam para a implantação de uma utopia: arte e arquitetura partilhando de uma totalidade harmônica para acolher uma sociedade nova.
A diversificação dos meios, a depuração das soluções formais e o valor que atribuiu a um tipo de intuição que nada tinha de fortuita fazem da obra de Athos Bulcão foco de convergência das investigações acerca dos rumos que o modernismo brasileiro adotou para alcançar a almejada relevância social. Parece que seu papel principal foi sempre o de educador, comprometido com o momento histórico em que se acreditava que o papel mais nobre para o artista seria produzir uma “expressão pedagógica justa” obtida, segundo Thomas Maldonado, por meio da incorporação de valores artísticos à vida cotidiana. Inúmeras são as obras em Brasília que manifestam essa qualidade, sobretudo quando o anonimato do artista é propositalmente preservado. Além disso, ao permitir que cada painel de azulejos produzidos em fábrica seja composto pelos operários que o instalam coloca em prática a socialização do ato criador, sem alarde.
Ao escolher um painel de azulejos de Athos Bulcão como motivo para a identidade visual de seu XXXII Colóquio, o Comitê Brasileiro de História da Arte faz uma bela homenagem. O artista e educador que contribuiu para a o despertar, em Brasília, de uma vocação para experimentações e desafios à tradição é o autor de uma obra que nos faz permanentemente lembrar que assim como os objetos mais triviais podem ser obras de arte a contemplação de um objeto de arte não é necessariamente um ato excepcional. É preciso, sempre, saber ver. Ou, para descobrir Athos Bulcão, caminhar e ver. |